E aí “Arnaldo”, juiz pode fazer o gol? Embates sobre os sistemas acusatório e inquisitório

retroatividade da representação no estelionato

Sistema acusatório X Sistema inquisitório

E aí “Arnaldo”, o juiz pode, de fato, fazer o gol? É claro que essa provocação é uma metáfora em relação ao processo penal contemporâneo. Afinal, estamos sendo bombardeados com ações e atitudes ultrajantes em relação ao Estado Constitucional de Direito.

Quando se participa, por exemplo, de um jogo de futebol, as regras do jogo devem estar bem definidas, ou seja, o que é uma falta, o que é o impedimento, quantas substituições cada time poderá fazer no decorrer da partida, o número certo de jogadores e etc.

Além das regras, cada jogador deve saber sua posição dentro do jogo. E não somente o jogador, mas o juiz, sem sombra de dúvidas, deve saber qual é o seu papel e sua importância para o bom andamento da partida e o sucesso do espetáculo. Afinal de contas, ele (juiz) tem um papel fundamental para a proteção do regramento. É ele quem garante a verdade dos fatos dentro de campo.

Se o juiz conduz a partida ao seu bel prazer, desconsiderando a regra, num primeiro momento isso pode até passar, mas ele corre o risco de inflamar a torcida e gerar uma agressão generalizada de todos os torcedores. De fato, vidas estão em jogo e o curso da história está em suas mãos. Que responsabilidade!

Guardadas as devidas proporções, o jogo processual segue as mesmas características e a mesma linha de raciocínio. Defesa e acusação precisam entender suas regras de atuação e os seus respectivos limites dentro do jogo processual. Precisam compreender que, dentro de uma relação dialética processual, deve existir paridade de armas, isto é, não deve haver privilégios, mas direitos e igualdade para ambas as partes!

Da mesma forma, o juiz precisa depreender a sua importância e posição dentro do processo. Ele não pode tudo, ele não pode, simplesmente, agir ao seu bel prazer, desconsiderando garantias constitucionais e rasgando Direitos fundamentais de quem quer que seja, sob pena de verdadeira afronta às balizas constitucionais.

Desta maneira, essa reflexão nos conduz à construção referente aos sistemas processuais, quais sejam, o inquisitorial e o acusatório. Ruy Cunha Martins [1] chama a nossa atenção afirmando que no processo inquisitorial há um “desamor” pelo contraditório. Eu vou um pouco além, há um completo rechaço e ódio ao devido processo legal.

No processo inquisitorial não há regras bem definidas e o juiz faz o que lhe der na cabeça, desconsiderando, diametralmente, qualquer condição de igualdade e qualquer pensamento democrático. Afinal, onde não há democracia, há despotismo!

O processo inquisitorial traz a ideia de um juiz inquisidor, ou seja, ele investiga, acusa e julga, tudo ao mesmo tempo. Mutatis mutandis, pensando no jugo de futebol, o “juiz inquisidor futebolístico” dita as regras, ataca, defende, faz o gol e parte para a galera!

O processo inquisitorial é tão desproporcional que o acusado é considerado “coisa’ e como um objeto despiciendo é chamado a declarar a verdade sob pena de tortura. Ou seja, uma lástima para a condição humana [2]. Como esquecer da Santa inquisição tão bem demonstrada por Humberto Eco [3] no livro “em nome da rosa”!

Ou seja, no processo inquisitorial o juiz age como verdadeiro protagonista e se considera o herói da nação e parte para a galera, pois ele se acha “o todo poderoso” ao ponto de fazer o gol.

Não deve ser assim! Por isso, o processo acusatório é contraponto magistral do despotismo inquisitorial. O processo acusatório respira democracia e igualdade. O processo acusatório exala amor e trata o acusado, não como um objeto, mas como um sujeito de direitos e obrigações.

No processo acusatório, encontramos uma distinção clara entre as atividades de julgar e acusar. Aqui, o juiz sabe o seu lugar e entende a sua importância dentro do processo. Ele sabe que sua atitude tem extrema relevância na condução da justiça e, por isso, deve ser prudente e coerente a sociedade.

Acima de tudo, ele deve ser imparcial. Ele entende que num processo acusatório, o juiz é um mero espectador e, portanto, não se considera um herói e acima do bem e do mal. Ele entende, verdadeiramente, que não deve fazer o gol, pois o gol fica a cargo das partes quando da produção das provas.

Ferrajoli [4] já dizia que o princípio acusatório é a base do processo acusatório. Não é à toa que o garantismo penal está umbilicalmente ligado ao sistema acusatório nos ensinando que a lei precisa ser seguida e os parâmetros legais devem ser cumpridos, sob pena de diametral afronta ao Estado Constitucional de Direito.

O sistema acusatório é tão relevante que o próprio instituto do “juiz das garantias” é decorrência dele. E vale lembrar, ainda, que o sistema acusatório fora trazido pelo pacote anticrime, lei nº 13.964/19 e passou a estar explícito no artigo 3º-A do CPP.

Juiz julga, o Ministério público acusa e o defensor defende. É simples, cada um no seu quadrado desenvolvendo e cumprindo as balizas constitucionais. Qualquer coisa fora disso, se o juiz agir como protagonista, está-se diante de uma parcialidade, que não pode ser aceita dentro de um Estado Constitucional, independente do crime que tenha sido cometido porquanto não fazemos justiça com as próprias mãos, mas usamos a justiça como arma de combate às injustiças.

E aí “Arnaldo”, juiz pode fazer o gol? A resposta fica com você, pensador do moderno direito contemporâneo! Reflita!

Avante sempre!  

Referências:

[1] CUNHA MARTINS, Ruy. O ponto cego do Direito. The brazilian lessons. Rio de Janeiro, lumem Juris, 2010

[2] ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014

[3] ECO, Umberto. O nome da rosa.São Paulo: Círculo do Livro, 1980

[4] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Trotta, 2012

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2 respostas

  1. Quero comprar os livros e ter acesso as petições modelo haja vista que sempre participei mas nunca foi dito meu nome

    1. Alexandre,
      Os livros da Professora Cristiane Dupret estão à venda no site da Editora Juspodivm. Os modelos de peças são destinados aos alunos do Curso de Prática na Advocacia Criminal.

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